Ed. 198 - 01/12/2000

Comissão Mundial de Barragens confirma: Danos sociais, ambientais e econômicos são causados por barragens em todo o mundo

Prof. José Goldemberg (Instituto de Eletrônica e Energia da USP), Prof. Jacques Marcovitch (Reitor da USP), e Bruce Aylward (americano, membro do secretariado na África do Sul)

Prof. José Goldemberg (Instituto de Eletrônica e Energia da USP), Prof. Jacques Marcovitch (Reitor da USP), e Bruce Aylward (americano, membro do secretariado na África do Sul)

A Comissão Mundial de Barragens se reuniu pela última vez nesta segunda feira dia 17/11, na Reitoria da USP, para apresentar e distribuir seu relatório final. Nas conclusões, a certeza de que os danos sociais, ambientais e econômicos são enormes e torna-se necessária a adoção de normas e procedimentos para a implantação de novos projetos.

Em Londres, quando da entrega e apresentação do relatório, o presidente do Banco Mundial, James Wolfenson e o ex-presidente Nelson Mandela afirmaram: “necessariamente, é preciso que se faça algo em favor dos povos e países onde barragens foram ou sejam construídas pois elas fracassaram em seus projetos gerais e causaram grandes danos”.

Alguns dados brasileiros

No Brasil, enquanto os impactos de barragens não forem avaliados corretamente e as populações já atingidas,  compensadas por suas perdas,  o MAB – (Movimento dos Atingidos por Barragens) exigirá a paralisação da construção de qualquer novo projeto e propõe a criação de uma Comissão Brasileira de Barragens para avaliar de forma independente, os impactos destes mesmos projetos. Seu coordenador, Sadi Baron, relata que só “Itaparica expulsou 40.000 pessoas de seu habitat primitivo (original) e,  13 anos após sua construção,  as famílias ainda esperam pela irrigação prometida e vivem às custas de cestas básicas fornecidas pelo governo.

Em Tucurui, 6500 pessoas são obrigadas a viver em pequenas ilhas, no meio do reservatório formado, sob a luz de lamparinas, ao mesmo tempo em que muitas outras aguardam a hora de seu reassentamento debaixo de lonas, em Porto Primavera. E o desenvolvimento propalado, pergunta ele, veio em favor de quem?”

Neste país, 93% da energia produzida vem de hidroelétricas. Um milhão de pessoas foram expulsas de suas terras para dar lugar às grandes barragens que segundo dados oficiais já inundaram 34 mil km2. É algo comparado em extensão territorial,  a um país maior que a Bélgica.  Mais de 30 mil famílias ainda esperam por uma compensação pelas perdas sofridas quando da construção de barragens, todas já inauguradas e em operação, há mais de 20 anos.

Fingindo desconhecer tudo isso, o governo brasileiro prossegue em sua política de construção de pequenas barragens usando os moldes da ditadura militar,  ignorando a miséria a que são relegadas as populações atingidas pelos projetos, preocupando-se apenas com a geração de energia.

A iniciativa de se criar uma Comissão Brasileira de Barragens  (independente) surgiu em Curitiba, durante o I Encontro Internacional de Atingidos por Barragens,  promovido pelo MAB, ao qual compareceram representantes de mais de 20 países.

Sadi Baron

Sadi Baron

Logomarca do MAB

Ativistas do MAB que se deslocaram do sul do país para mostrarem suas reivindicações ao mundo.

Dados mundiais

O relatório da CMB (Comissão Mundial de Barragens mostra que tais obras, em todo o mundo,  expulsaram entre 40 e 80 milhões  de pessoas e destas, poucos readquiriram o padrão de vida prévio – populações indígenas e camponesas foram as que mais sofreram.- O impacto ambiental, a extinção de muitos peixes e de outras espécies aquáticas, grandes perdas de florestas que hoje estão submersas, pantanais e áreas agriculturáveis aconteceram,  gerando o empobrecimento de muitos para beneficiar exatamente os setores mais enriquecidos da sociedade mundial.

Palavra da Eletrobrás

Luciano Nobre Varella – Chefe Depto Eng. Meio Ambiente da Eletrobrás

Luciano Nobre Varella – Chefe Depto Eng. Meio Ambiente da Eletrobrás

O representante da Eletrobrás, Luciano Nobre Varella, Chefe do Departamento de Engenharia e Meio Ambiente da empresa, afirmou durante o encontro  que nos próximos dez anos a capacidade de geração em hidrelétricas no Brasil precisa ser aumentada em cerca de 40%, e que a empresa dispõe de normas rígidas no tocante ao controle ambiental do setor elétrico desde 1990.  O professor Goldenberg sugeriu como solução paliativa e imediata , que a Eletrobrás re-enquadre suas normas de acordo com as sugestões atuais da Comissão Mundial de Barragens o que, se feito,  poderá auxiliar na diminuição dos graves problemas vividos pelas populações atingidas.

Outras participações

Prof. Luis Pinguelli Rosa – (UFRJ)

Prof. Luis Pinguelli Rosa – (UFRJ)

Prof. Emílio Lebre Larovere – (UFRJ)

Prof. Emílio Lebre Larovere – (UFRJ)

A Universidade Federal do Rio de Janeiro, participou do projeto e na solenidade esteve representada pelos Professores Emílio Lebre Larovere  ( Coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Meio Ambiente) e pelo Professor Luis Pinguelli Rosa, vice-diretor da COPPE (Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ).

Em defesa da manutenção das águas em Furnas

Durante os debates o editor deste semanário,  na condição de Presidente do CODEMA e de Diretor da Federação Brasileira de Jornais, mais uma vez, denunciou os graves crimes ambientais ocorridos com o violento rebaixamento do nível das águas da represa de Furnas e assim se expressou: “Confesso, Professor Goldenberg, que não me sinto muito à vontade, como simples jornalista de uma pequena cidade do interior de Minas, ao ter que me dirigir a tão seleta platéia, composta certamente pelas maiores e mais ilustres autoridades mundiais sobre o assunto em pauta. Mas, jamais poderia me esquivar desta oportunidade, para fazer chegar aos senhores o que de fato ocorreu e vem ocorrendo com a população dos 34 municípios lindeiros ao Lago de Furnas. Dos meus 55 anos de vida,  passei grande parte deles ali, e conheci  bem as histórias dos suicídios, das agonias, desgraças, das incertezas e das insatisfações quando do alagamento das melhores e mais ricas terras do meu e dos outros municípios. E isto, vejo agora, esta Comissão Mundial muito bem detectou e expôs em seu relatório ao analisar como de fato fez, barragens mundo afora.  Mas,  acontece que hoje, quase cinqüenta anos depois, estamos novamente sendo massacrados pela falta de política do Governo Federal, especialmente após a criação da ONS.-, da Agência Nacional de Energia e da briga política entre o Governador Itamar Franco com o Presidente FHC. Não gostaria de me ater a este problema político, mas me sinto no dever de informar aos senhores que da criação de Furnas até agora, foram gastos,  milhões de dólares em planos feitos pelos americanos (TWV), pelo mais recente feito pelos Espanhóis (GERC_INATUR) e através de outras medidas e planos onde se detectou ao longo do lago, os locais mais apropriados para a exploração turística, da  agricultura, do trato da pecuária e outras atividades. Furnas, se comprometeu a fazer muita coisa em prol das populações e regiões atingidas pela inundação. Tudo está lá, registrado nos papéis, nos documentos de sua fundação,  ainda à época de JK. E nada foi cumprido. Ela apenas tem pago nos últimos anos, aos municípios, irrisórias quantias a título de royalties, que não os recompensa infimamente em relação as perdas havidas. Praticamente nada! De três anos para cá, aquele sonho de que parte das populações atingidas seriam recompensadas com a implantação maciça de projetos turísticos que afloraram na região norte do lago, nas águas doces às quais se referiu o Professor Goldenberg ainda há pouco em seu discurso de abertura desta solenidade, nos vimos, repentinamente,  nesta condição de penúria em que os povos das terras inundadas por Furnas hoje, nosencontramos. Com as águas  batendo nos limites mínimos de 12% do volume útil do reservatório, tudo está diferente e os prejuízos são incalculáveis.  Isto significa que barcos, clubes, hotéis, restaurantes e todos os demais projetos ,  investimentos  e equipamentos instalados  na região, todos por haverem acreditado no governo e apostando que o lago continuaria existindo, foram,  todos por água abaixo e o que é pior, exatamente pela  falta dela. E para espanto nosso, através de dados obtidos dentro da própria Furnas Centrais Elétricas, – me perdoem a franqueza, os senhores da ANEEL e de outros órgãos governamentais que me antecederam em suas falas  – demonstramos que a vazão afluente nos últimos três anos, foi muito maior que nos últimos mais de 40, quando a represa se apresentava durante  grande parte do ano, próxima de sua quota máxima, a 768. Então senhores, tudo isto para nós,  é um problema claramente político ou de falta de gestão adequada.  Hoje,  os dados retirados de Furnas  e que estão aqui à disposição dos senhores, mostram que a vazão afluente é inferior à vazão turbinada.  A produção em megawatts, por outro lado é inferior à de anos anteriores  quando  se turbinou menor volume de água. Isto nos leva a crer  que realmente,  tem turbina rodando na banguela , repassando água aqui para baixo. Falo em tom de denúncia, e de um pedido para que esta comissão cuide e bem do assunto,  já que entendemos que a solução para os graves problemas econômicos e sociais destas regiões, como o desemprego instaurado na área do turismo e outras,  a perda dos investimentos feitos até mesmo  em cursos onde  SENAC, SESC e outros foram parceiros,  para a formação  de simples “porteiros de pensões ou hoteizinhos a mâitres , à criação de uma Faculdade de Turismo como a de Formiga, que já entregou ao  mercado cerca de 50 turismólogos”, tudo isto como dito, foi por água abaixo, e exatamente, repito, pela  falta do que antes aqui abundava. E tudo ocorreu não por culpa de São Pedro,  mas certamente por culpa exclusiva de quem coordena esta política de geração de energia ou atendeu a caprichos outros. Depois de tudo interligado, sabemos todos, tanto faz gerar ali no sul, aqui, ou no norte. Prova disto é que na Rede Globo, na última sexta feira, foram exibidas fotos da represa, ou melhor do deserto em que grande parte dela se transformou,  com o solo rachado, e apesar disto se afirmou na mesma matéria que: apesar da falta de chuvas, não faltará energia pois, ela será gerada no sul. Acredito que a matéria foi paga por Furnas e revela em suas entrelinhas algo de muito mais sério. Dizer que não choveu é mentira  e os dados hidrológicos retirados dos arquivos da própria FURNAS atestam que neste ano,  até outubro,  a vazão afluente medida por ela própria, estava 22% acima da medida durante todo o ano anterior. Fica a minha denúncia. Evidentemente os senhores sabem quantos metros de diâmetro tem uma turbina de Furnas, como sabem também quanto se gasta de água para fazer girar aqueles monstros arcaicos. Sabem e conhecem também que já existem turbinas com pouco mais de 3 metros de diâmetro,  gerando tanto quanto aquelas e consumindo infinitamente menor volume de água neste trabalho.  Me parece portanto que, a solução energética,  não está simplesmente em se criar novas barragens. Repito, não sou engenheiro, sou um simples jornalista, mas a lógica de pensamento me leva a assim imaginar. Sei também que a distribuição precisa ser revista pois é impossível se colocar uma polegada de água em um cano de apenas meia polegada e acredito que na transmissão de energia,  o problema deva ser semelhante. Também não sei se o custo de novas turbinas pode ser suportado pelo país, mas, como está se privatizando tudo e  como sempre aparece gente de fora interessada em bons negócios, quem sabe não surge aí alguém querendo trocar uma velha turbina por quatro novas que gerarão e produzirão mais energia para nós, e muito mais riqueza para o investidor consumindo pouca água? Por maior seja o investimento, garanto aos senhores que a economia de água, só em matéria de ganho ambiental, será muito bem compensada. Furnas que patrocina o programa Observatório da Imprensa e se apresenta como uma empresa que se preocupa com a natureza, preocupa mesmo! Em um ano, derrama no lago milhões de alevinos e no outro, abaixa o volume do reservatório de cem para dez por cento,  e,  continua permitindo que o esgoto de 150 cidades e os mais de três mil quilômetros de praias em seu entorno, todo desmatado e sem curvas de nível, derramem toneladas de agrotóxico em suas águas. Se com o reservatório em sua quota normal após as primeiras chuvas encontrávamos milhões de  peixes boiando de barriguinha para cima, imaginem os senhores, agora, em que condições está esta pequena quantidade de água armazena em virtude do derramamento de esgotos e de agrotóxicos que certamente aumentaram. A escassez de água, parece-nos lógico, deve dificultar as condições de diluição e a oxigenação pode estar próxima do zero. O  que terá então acontecido com a fauna e a flora do lago?  O crime ambiental ali ocorrido, para mim  é dos  maiores já perpetrados contra a natureza neste país. Os senhores me perdoem a franqueza, mas todos,  autoridades e sociedade civil, ao que nos parece, estão de olhos fechados para esta triste realidade. Obrigado.

Outras falas

Prof. Luis Pinguelli Rosa – (UFRJ)

Prof. Luis Pinguelli Rosa – (UFRJ)

Dentre as muitas autoridades que fizeram uso da palavra no momento próprio do debate, destacamos:

Professor Luiz Pinguelli Rosa, vice diretor do COPPE – (Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ), que disse em determinado trecho de sua fala: “… Outra observação importante é sobre a narrativa do companheiro da cidade de Formiga, que mostrou a situação na região,  pois isto reflete uma má operação dos reservatórios. Todos os reservatórios do nosso sistema integrado aqui no sudeste e centroeste são mal operados porque não há equipamentos. Não é possível, infelizmente,  substituir as turbinas por turbinas menores para gerar mais energia. A água que está lá é aquela que vai gerar energia. Não dependerá do calibre da turbina. O problema é que não há água. E o companheiro tem toda razão, não há água só porque não chove, não há, porque o reservatório foi mal operado. Por que foi mal operado? Porque está desotimizado todo o sistema, por falta de novos equipamentos. As termoelétricas estão extremamente atrasadas, e adotou-se portanto, nitidamente, uma tática de esvaziar-se os reservatórios. O que é um absurdo porque é um investimento altíssimo. E agora,  nós estamos vivendo um novo problema que já está atingindo uma população que contava para a sua subsistência com aquela água que repentinamente,  desaparece! Graças a Deus,  chegamos  ao fim do ano sem maior crise, mas o risco é muito alto. A afirmativa do governo de que o risco no ano 2000 é zero em termos de faltar energia é o mesmo que dizer que uma pessoa pode atravessar a avenida Paulista,  às 3 horas da tarde, sem olhar para os lados. E,  sendo uma pessoa muito espirituosa, ao chegar do outro lado, diz que o risco de atravessar uma rua naquelas condições é zero. Absolutamente isto não é correto, só ocorreu porque ela teve muita sorte. Então, o problema do Brasil é que esta questão das barragens é mesmo  muito sério neste momento. É preciso uma política de transição para a termoeletricidade. Eu considero grave a situação destes reservatórios. Não só do ponto de vista elétrico que é gravíssimo mas agora também, cumulado com estes outros problemas correlatos com o reservatório e com relação às águas e quem delas vivia e as viu sumir. E o pior é que a expectativa de baixa continua, porque não há energia suficiente para atender a demanda, porque não há capacidade instalada proporcional.Quanto as hidroelétricas programadas:  primeiro, nem todas serão terminadas e muito menos neste período que delas se  precisa, ou seja, de agora até os próximos três anos.”

A representante da WWF – Brasil – Sandra Charity, Coordenadora do Programa de Conservação e Gestão de Água Doce, (Água para a Vida), também fez uso da palavra e questionou assuntos pertinentes, posicionando-se igualmente em favor de nossas reivindicações.

Cassio Viotti, Presidente do Comitê Brasileiro de Barragens e Consultor da I.H.A (Inglaterra), também argumentou sobre os problemas que o sudeste, especialmente os lindeiros a Furnas estão passando.

Omar Vieira, Diretor da Eletronorte, durante sua intervenção também teceu comentários a respeito das denúncias e se fixou mais em exemplos de sua área.

Oswaldo F. Rossetti Jr, Diretor da Hidrovia Tietê Paraná, também se posicionou contra o esvaziamento das represas enfocando a necessidade do aproveitamento múltiplo dos reservatórios.

NR – Os pronunciamentos e respostas dadas pelos estrangeiros presentes, deixam de ser transcritos por razões óbvias pois, embora tivéssemos contado com a tradução simultânea nos foi impossível pela precariedade de nossos equipamentos gravá-los. Entretanto, a tônica foi a mesma e o consenso geral indica que, as diretrizes descritas no relatório final precisam ser seguidas por todos os países. Voltaremos ao assunto na próxima edição, trazendo aos nossos leitores maiores detalhes sobre o relatório e sua importância para a humanidade.

Ed. 199 - 08/12/2000

Barragens – Alguns Enfoques da Comissão Mundial que Estudou o Assunto

Em abril de 1997, com apoio do Banco Mundial e da UCN – União Para Conservação Mundial – grupos representando diversos interesses reuniram-se em Gland (Suíça), por ocasião da publicação de um recente relatório do Banco Mundial, para discutirem questões altamente controversas envolvendo as grandes barragens. O workshop reuniu 39 participantes de governos, do setor privado, de instituições financeiras internacionais, de organizações da sociedade civil e das populações afetadas. Uma das propostas resultantes do encontro foi a de que todas as partes envolvidas trabalhassem juntas para estabelecer a Comissão Mundial de Barragens (CMB) com mandato para:

  • Examinar a eficácia da construção de grandes barragens e estudar alternativas para o desenvolvimento de recursos hídricos e energéticos; e
  • Elaborar critérios, diretrizes e padrões internacionalmente aceitáveis para o planejamento, projeto, avaliação, construção, operação, monitoramento e descomissionamento de barragens.

A CMB iniciou seus trabalhos em maio de 1998, sob a presidência do prof. Kader Asmal, ministro de Assuntos Hídricos e Florestais da África do Sul, na época. Os membros foram escolhidos de tal modo que refletissem a diversidade regional, uma variada gama de conhecimentos e as diferentes expectativas das partes envolvidas.

A CMB foi independente, com cada membro participando com sua capacidade individual, não representando nenhuma instituição ou país.

A Comissão empreendeu o primeiro estudo abrangente de natureza global e independente do desempenho e impacto das grandes barragens e das opções disponíveis para o desenvolvimento de recursos hídricos e energéticos.

Consultas públicas e o livre acesso à Comissão foram componentes fundamentais do processo. O Fórum da CMB, constituído por 68 membros – formando uma amostra representativa e fiel dos vários interesses envolvidos, pontos de vista e instituições – foi consultado ao longo de todo o trabalho da Comissão.

A CMB foi pioneira num novo modelo de obtenção de verbas envolvendo todos os grupos interessados no debate. 53 organizações públicas, privadas e da sociedade civil ofereceram fundos para o processo da CMB.

O relatório final da Comissão Mundial de Barragens, “Barragens e Desenvolvimento: Um   Novo Modelo  para Tomada de Decisões”,  foi publicado em novembro de 2000.

A seguir apresentamos um resumo condensado das decisões e sugestões nele apresentadas.

Os Comissários da CMB

cmb_comissariosUma ampla consulta a todos os grupos interessados na questão das grandes barragens resultou em um convite a várias personalidades eminentes para tornarem-se membros da Comissão Mundial de Barragens (CMB). Essas pessoas foram selecionadas por sua ampla e variada experiência, pontos de vista e conhecimentos que poderiam trazer para o debate. O secretário-geral foi indicado membro ex-officio da Comissão. Os comissários, coletivamente, foram responsáveis pela elaboração dos termos do mandato da CMB. O trabalho da Comissão foi de natureza consultiva, e não investigativa. Diferentemente de uma comissão de caráter jurídico, a CMB não foi criada para dirimir disputas específicas.

1 – Tomada de decisões:

Está baseado em cinco valores essenciais, a saber: eqüidade, sustentabilidade, eficiência, processo decisório participativo e responsabilidade. Assim, o modelo propõe:

  • Uma abordagem de direitos e riscos que sirva de base prática e justa para identificar todos os legítimos grupos de interesse envolvidos na negociação de opções de desenvolvimento e acordos;
  • Sete prioridades estratégicas e os princípios políticos correspondentes para o desenvolvimento de recursos hídricos e energéticos – conquista da aceitação pública, avaliação abrangente das opções, aproveitamento das barragens existentes, preservação de rios e meios de subsistência, reconhecimento de direitos adquiridos  e compartilhamento de benefícios, garantia de cumprimento, e compartilhamento dos rios para a paz, desenvolvimento e segurança.
  • Critérios e diretrizes para boas práticas relacionadas às prioridades estratégicas – abrangendo desde a análise do ciclo de vida e de fluxos ambientais até análises de risco de empobrecimento e o estabelecimento de pactos de integridade.

A posição filosófica e as recomendações da Comissão oferecem espaços para avanços que nenhuma perspectiva isolada é capaz, assegurando que a tomada de decisões sobre o desenvolvimento de recursos hídricos e energéticos:

  • Reflita uma abordagem abrangente capaz de assegurar as dimensões sociais, ambientais e econômicas do desenvolvimento;
  • Crie um maior grau de transparência e certeza para todos os envolvidos, e
  • Aumente o nível de confiança na capacidade das nações e das comunidades de serem atendidas suas necessidades futuras de água e energia.
Barragem de regularização com multiuso das águas

Barragem de regularização com multiuso das águas

Alguns dados:

Hoje, um terço dos países do mundo dependem de usinas hidrelétricas para produzirem mais da metade da sua eletricidade consumida. As grandes barragens, sozinhas, respondem por 19% da produção da eletricidade consumida no mundo.

Barragens têm sido construídas no mundo há milhares de anos.  Serviram e servem para controlar inundações, para represar águas, como fonte de energia elétrica, para fornecer água para o consumo humano direto, uso industrial ou para irrigar plantações.

Em torno de 1950 os governos – ou, em alguns países, o setor privado – estavam construindo um número cada vez maior de barragens, à medida que as populações aumentavam e as economias nacionais cresciam. Pelo menos 45.000 delas foram construídas para atender a demanda de água ou energia. Hoje quase a metade dos rios do mundo tem ao menos uma grande barragem.

Na entrada do novo século, um terço dos países do mundo dependem, como dissemos, de hidrelétricas para produzirem mais da metade da eletricidade por eles consumida.

A metade das grandes barragens foi construída para primordialmente atenderem à irrigação e cerca de 30 ou 40% dos 271 milhões de hectares irrigados no planeta delas dependem.

As represas hoje são entendidas como importantes meios de atender a necessidades percebidas pela água e energia e como investimentos estratégicos de longo prazo, capazes de oferecerem múltiplos usos e seus conseqüentes benefícios. Alguns destes são comuns a todos os grandes projetos. Dentre eles destacamos: desenvolvimento regional, geração de empregos, fomento para base industrial com potencial exportador, produção agrícola, exploração de pesca, implantação de pólos turísticos, e outros.

Impactos ambientais e sociais

Pesca ex-fonte de renda e sustento

Pesca ex-fonte de renda e sustento

Nos últimos 50 anos, os impactos ambientais e sociais causados por grandes barragens também foram enormes. Estima-se que cerca de 80 milhões de pessoas foram deslocadas pelas barragens.

À medida que o processo de decisão for mais aberto, como preconiza o relatório, com transparência e maior participação, a opção pela construção de barragens foi sendo mais contestada, chegando-se ao ponto de colocar-se em questão a construção de novas grandes barragens em muitos países.

Os enormes investimentos envolvidos e os impactos gerados por elas provocaram  conflitos acerca da localização e impactos dessas construções – tanto das já existentes quanto das que ainda estão em fase de projeto – tornando-se assim, dentro da área de desenvolvimento sustentável, uma das questões mais controvertidas.

A destruição de ecossistemas, o aumento de endividamento dos países, o deslocamento e o empobrecimento de populações, a dizimação de recursos pesqueiros importantes e a divisão desigual de custos e benefícios, são alguns dos argumentos dos contrários às suas construções.

Com estes conflitos e pressões em mente, a CMB deu início ao seu trabalho em maio de 1998. Um dos primeiros pontos acerca do qual os Comissários concordaram foi o de que as barragens devem ser apenas um meio para se alcançar um fim. Mas qual?  Quão centrais são os desafios que as grandes barragens visam solucionar? E até que ponto conseguem fazer face a estes desafios?

A CMB concluiu que o “fim” pretendido por todo projeto deve ser a melhoria sustentável do bem-estar humano. Isso significa promover um avanço significativo no desenvolvimento humano em base que seja economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável.

Se uma grande barragem for a melhor maneira de atingir tal meta, ela merece ser apoiada. Se outras opções oferecem soluções melhores, elas devem ser preteridas.

Assim concluiu-se que:

  • As barragens prestaram uma importante e significativa contribuição ao desenvolvimento humano, e os benefícios derivados delas foram consideráveis.
  • Em um número excessivo de casos foi pago um preço inaceitável e muitas vezes desnecessário para assegurar esses benefícios, especialmente em termos sociais e ambientais, pelas pessoas deslocadas, pelas comunidades a jusante, pelos contribuintes e pelo meio ambiente natural.
  • A falta de eqüidade na distribuição dos benefícios colocou em questão a capacidade de diversas barragens de atender de maneira ótima as necessidades de desenvolvimento dos recursos hídricos e energéticos quando confrontados com outras alternativas.
  • Ao se incluir no debate todos aqueles cujos direitos estão envolvidos e que arcam com os riscos associados às diferentes opções de desenvolvimento de recursos hídricos e energéticos, são criadas as condições para uma resolução positiva de interesses concorrentes de interesses e de conflitos.
  • Soluções negociadas aumentarão sensivelmente a eficiência do desenvolvimento de projetos de aproveitamento de recursos hídricos e energéticos ao eliminarem projetos desfavoráveis nos estágios iniciais do processo, oferecendo como opções aqueles que as principais partes envolvidas concordam serem os melhores para atenderem as necessidades em questão.

O que é uma grande barragem?

cmb_graficoDe acordo com a ICOLD (Comissão Internacional sobre Grandes Barragens), uma grande barragem tem que ter altura igual ou superior a 15 metros (contados do alicerce). Se a barragem tiver entre 5 e 15 metros de altura e seu reservatório tiver capacidade superior a 3 milhões de m3, também esta estará classificada como “grande”. Tomando por base este conceito, existem hoje no mundo, cerca de 45.000 grandes barragens.

O relatório afirma também que:

  • A competição irá aumentar entre os três usuários principais de água em termos globais – agricultura (67%); indústria (19%) e uso municipal/residencial (9%) de vez que todos continuarão recorrendo às águas necessárias para a manutenção de sistemas naturais.
  • Um fato de consumo que pode ser significativo em climas secos é a evaporação de reservatórios, estimada em cerca de 5% da retirada total de água.
  • Uma projeção feita pela Vision for Water and Food  sugere que somente a irrigação pode exigir um aumento de 15% a 20% no volume de água fornecida em 2025.
  • Em 2025, cerca de 3,5 bilhões de pessoas estarão vivendo em países com carência de água. Hoje, 2 bilhões de pessoas não têm acesso à eletricidade e a demanda continua aumentando nas economias em desenvolvimento.
  • Espécies de água doce, especialmente peixes, estão cada vez mais ameaçadas, uma grande percentagem das várzeas do mundo já desapareceu e a capacidade dos ecossistemas aquáticos continuarem produzindo bens e serviços dos quais as sociedades dependem está diminuindo muito rapidamente. Com isso, a água para a própria natureza está se tornando uma condição essencial.

Ao longo do último século, grande parte do mundo recorreu às barragens para  atender à demanda crescente de água e eletricidade e entre as décadas de 30 e 70 a construção delas era sinônimo de crescimento, ou melhor, de desenvolvimento e progresso econômico. Tal tendência atingiu o auge nos anos 70 quando em média duas ou três novas barragens eram comissionadas no mundo a cada dia. O declínio na construção de novas barragens foi então igualmente dramático, especialmente na Europa e nos EUA, onde os locais tecnicamente atraentes já haviam sido aproveitados.

Os maiores responsáveis pela geração através de hidrelétricas

cmb_pivoCerca de 2/3 das grandes barragens do mundo estão localizadas em países em desenvolvimento. A energia hidrelétrica é responsável por mais de 90% da produção total de eletricidade em 24 países, dentre eles o Brasil e a Noruega. No restante do mundo, encontram-se em 75 países grandes barragens que foram controladas para a regularização de rios e contenção ou controle  de inundações. De 12% a 16 % da produção mundial de alimentos depende das grandes barragens, estimadas em 50% das existentes no mundo.

Nota da redação: Pela relevância e complexidade do assunto, decidimos subdividi-lo em três matérias distintas, para que o leitor possa aos poucos assimilá-lo e, se possível, por si mesmo, fazendo correlações entre as afirmativas e recomendações da CMB, como nosso caso específico com relação ao esvaziamento do lago de Furnas. Se você não leu nossa matéria na edição anterior, seria de bom alvitre que o fizesse, pois da seqüência de relatos e de posicionamentos obtidos em depoimentos das mais altas autoridades sobre o assunto, é provável que nasçam respostas para as dúvidas que a matéria possa suscitar.

Paulo Coelho